Cultura/Perfis

Cristiane Ludgerio

por Gabriela Baraldi Passy

A primeira vez em que eu vi a Cristiane não foi no dia em que a entrevistei. Na primeira vez em que a vi, ela era celebridade, desfilando de um lado para o outro, de salto alto, cheia de brilho e purpurina, dando atenção a todos com a classe de uma musa. E linda. Linda mesmo. No dia em que ela me recebeu, estava bem mais humana: shorts jeans e blusinha, cabelo solto e cara limpa. Quando eu pedi autorização pra tirar fotos, foi correndo trocar de blusa – aquela já tinha sido fotografada e publicada por outro jornalista. 

(Foto: Nathalie Portela)

(Foto: Nathalie Portela)

 

Cheia de boa vontade, Cristiane me recebeu para uma conversa de quase uma hora. Ela tem estado em evidência na mídia local ­ e não é à toa, já que ganhou destaque especial durante último carnaval em Bauru, interior de São Paulo. Cristiane se sentou de frente para mim, com maço de cigarros, isqueiro e celular ao lado direito. Mas não tocou em nenhum deles durante toda a entrevista – não deu tempo. Tinha muita coisa pra falar.

Cristiane Ludgerio da Silva tem 32 anos e nenhuma papa na língua; na hora que acha que deve, fala o que pensa de forma firme. Teve uma infância tranquila, e aos oito anos começou a se descobrir – ou se encontrar, como ela mesma diz – mulher. Sim, Cristiane é transexual, e a primeira mulher bauruense a conseguir fazer legalmente a troca de nome. É, também, a Rainha da Diversidade do Carnaval de Bauru em 2015.

Dos oito aos doze anos, ela lidou com o conflito que é se sentir diferente do que é considerado socialmente correto. Aos quinze, já decidida, abriu o jogo para a família. “Me abri dentro da minha casa, porque minha aceitação tinha que ser aqui dentro; lá fora é um outro mundo, um outro problema, que não me interessa”. A mãe, apesar do susto inicial, aceitou bem a nova situação. “Depois ela até me explicou que as mães são muito egoístas, planejam a vida do filho embora a vida seja dele”, conta ela. Para o pai, o maior problema foi uma questão linguística: como se referir ao filho que se descobre filha? Ele? Ela? Para situações como essa, Cristiane já tem sua dica na ponta da língua: “Se você está vendo uma visão feminina, independente do sexo, é ‘ela’. O povo tem que tirar da cabeça o órgão sexual define alguma coisa. Está na mente o ato de se sentir mulher ou o ato de se sentir homem”, esclarece.

Aos dezoito anos, quando foi morar fora de casa, junto com a irmã, Cristiane começou a transformação do seu corpo, tomando hormônios. Contudo, sempre foi receosa em relação a procedimentos cirúrgicos, e não fez – nem pretende fazer – a cirurgia de mudança de sexo. Sobre essa última, tem opiniões bem consolidadas. “Fazer uma cirurgia não vai me fazer ser mais homem ou mais mulher. Não vai colocar útero, não vai colocar ovário, eu não vou gerar, eu não vou amamentar. Qual é a diferença? Vão abrir um orifício em mim. E?! Quem vai saber o que eu tenho e o que eu não tenho? A gente não vive num país nudista!”, conclui com o bom humor que lhe é característico.

Cristiane não é do tipo que fica parada. Com o Ensino Médio concluído, fez curso de cabelo e maquiagem, trabalhou em muitos salões, até que decidiu se tornar autônoma. Atende dentro da própria casa e a domicílio, e já avisa que, se estiver aquele friozinho ou chovendo, ela se dá o direito de não trabalhar pela manhã. Também fez um curso de necrópsia, já que pretendia trabalhar com necromaquiagem.

Foi nesse último curso, através de uma conversa com o professor de Direito (mais tarde seu advogado), que Cristiane pela primeira vez se viu incentivada a pedir a mudança de nome na Justiça. Ela passou por médico legista, psicóloga e assistente social, e mesmo com toda a burocracia que casos assim envolvem, o processo correu mais rápido que se esperava. A expectativa era de uma demora de quatro anos, já que nenhum caso como esse havia acontecido em Bauru, mas em apenas um ano e três meses Cristiane recebeu a notícia de que havia ganhado o processo, que lhe custou algo em torno de 6 e 8 mil reais. No final de 2014, Cristiane já tinha a autorização judicial para fazer a troca de todos os seus documentos. O sentimento era de conquista, aliado à certeza de que nunca mais passaria por todas as situações constrangedor vividas até então. Nunca mais alguém ia se referir a ela pelo antigo nome – que não revela durante toda a nossa conversa.

Cristiane nunca foi vítima de violência física. “Não é que eu seja melhor do que ninguém, mas eu tive uma orientação dentro da minha casa, e isso me ajudou muito”, comenta Cristiane, sobre sua forma de se vestir e de se comportar, seguindo os moldes da mulher tradicional. “De repente é por isso que eu prego a boa moral. Eu penso de uma outra forma, eu acho”, aponta ela.

Apesar do crescente número de coletivos e ONGs que se organizam para unificar e dar força ao movimento LGBT, Cristiane tem uma posição controversa, contrária à existência deles, já que sente que o movimento acaba separando essas pessoas do resto da sociedade. “Eu sou contra tudo que segmente, porque eu acho que faz mais alvos, acho que piora. Como que a gente vai juntar tudo se a gente classifica sempre? Não tem como”, explica.

A atual Rainha da Diversidade pretende, ainda, se tornar psicóloga, e deve prestar vestibular nesse ano. Ela é feliz? “Muito! Eu sou completa”, afirma. Tem medo de alguma coisa? “Eu tenho medo de Deus. Só. Ele cria, ele destrói”. Diz não acreditar em vida após a morte, mas termina citando Sheakespeare para dizer que ainda acredita que existem mais mistérios entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia pode imaginar.

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